Consumidor equiparado: a proteção estendida do CDC
Consumidor equiparado: a proteção estendida do
CDC
Pessoas que se machucam ao
escorregar em piso molhado sem sinalização, outras que têm a vida
irremediavelmente comprometida por uma bala perdida em tiroteio iniciado pelos
seguranças de uma loja. Casos assim – menos ou mais cotidianos, menos ou mais
dramáticos – fazem parte da rotina do Judiciário e têm em comum o fato de que a
vítima, embora não haja comprado produtos ou serviços da empresa, foi, de algum
modo, afetada por um evento danoso que a colocou na condição de consumidor por
equiparação.
Conforme explicou a
ministra Nancy Andrighi no REsp 1.125.276, o conceito
de consumidor não está limitado à definição restritiva contida no caput do
artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), devendo ser extraído da
interpretação sistemática de outros dispositivos da Lei 8.078/90.
Surge então a figura do
consumidor por equiparação, ou bystander, “inserida pelo
legislador no artigo 17 do CDC,
sujeitando à proteção do CDC também as vítimas de acidentes derivados do fato
do produto ou do serviço. Em outras palavras, o sujeito da relação de consumo
não precisa necessariamente ser parte contratante, podendo também ser um
terceiro vitimado por essa relação”, afirmou.
Dessa forma, todo aquele
que não participou da relação de consumo, não adquiriu qualquer produto ou
contratou serviços, mas sofreu algum tipo de lesão pode invocar a proteção da
lei consumerista na qualidade de consumidor equiparado.
Piso molhado
Em março deste ano, o
ministro Luis Felipe Salomão foi relator na Quarta Turma de um recurso
originado de ação de reparação movida por um idoso contra o município e um
posto de gasolina (AREsp 1.076.833). O autor
sofreu uma queda e fraturou três costelas ao passar pela calçada do posto, pois
o piso estava molhado. Havia uma mangueira no interior do estabelecimento que
escoava água, porém não existia qualquer sinalização que alertasse para o
perigo no local.
O idoso alegou negligência
do posto por ter deixado escoar água sem providenciar a sinalização adequada.
Também sustentou haver falta de fiscalização dos passeios públicos por parte do
município.
O posto afirmou a não
incidência da lei consumerista no caso, já que não havia fornecido qualquer
produto ou serviço ao autor da ação. Disse que a culpa era exclusiva da vítima
e que se tratava de caso fortuito e de força maior.
O estabelecimento foi
condenado a pagar R$ 6.780,00 por danos morais. O Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul (TJRS) entendeu que incidiam as normas do CDC, já que houve
defeito no serviço, pois o posto não ofereceu a segurança que o consumidor
deveria esperar. Para o tribunal, a lei tutela a “segurança ou incolumidade
física e patrimonial do consumidor”.
Segundo o ministro
Salomão, o entendimento da corte estadual está em conformidade com a
jurisprudência do STJ no sentido da proteção conferida pelo CDC a todos aqueles
que, mesmo sem participar diretamente da relação de consumo, sofrem as consequências
do dano, tendo sua segurança física e psíquica colocada em risco.
Cacos de vidro na via
No julgamento do REsp 1.574.784, na
Terceira Turma, a ministra Nancy Andrighi também entendeu correta a equiparação
do consumidor, nos termos do artigo 17 da lei consumerista, conforme decidido
pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
Uma criança se acidentou
ao tentar fugir da colisão com a porta do caminhão de uma distribuidora de
cervejas Schincariol, fabricadas pela empresa Brasil Kirin Indústria de Bebidas
Ltda., que transitava na via com as portas abertas. Ao desviar da porta, a
criança caiu sobre garrafas de cerveja quebradas que haviam sido deixadas na
calçada cinco dias antes pela mesma distribuidora. Ela sofreu cortes graves no
pescoço e outras lesões leves.
O tribunal estadual
manteve a condenação solidária da fabricante e da distribuidora ao pagamento de
danos morais no valor de R$ 15 mil.
Para a ministra Nancy
Andrighi, a jurisprudência do STJ é clara no sentido de que “a responsabilidade
de todos os integrantes da cadeia de fornecimento é objetiva e solidária, nos
termos dos artigos 7º, parágrafo único, 20 e 25 do CDC”, sendo “impossível
afastar a legislação consumerista” e a equiparação da criança a consumidor,
visto que “o CDC amplia o conceito de consumidor para abranger qualquer vítima,
mesmo que nunca tenha contratado ou mantido qualquer relação com o fornecedor”.
Tiroteio na rua
No REsp 1.732.398, de
relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, uma jovem pediu indenização
por danos materiais, morais e estéticos em decorrência de ter sido baleada aos
12 anos de idade, quando retornava da escola e passava por uma rua onde havia
começado um tiroteio. A troca de tiros ocorreu porque os seguranças privados
contratados pelos donos das lojas instaladas no local reagiram a uma tentativa
de roubo, e um dos tiros atingiu a jovem, deixando-a tetraplégica.
O tribunal estadual fixou
o valor das indenizações por danos morais e estéticos em R$ 450 mil cada. A
decisão foi confirmada pela Terceira Turma do STJ em razão da “gravidade das
lesões sofridas pela autora, que revelam, por si sós, a existência de ofensa à
sua integridade física, psíquica e emocional, não apenas porque dependerá,
muito frequentemente, da ajuda de terceiros ou de recursos tecnológicos, não
raramente de elevado custo, para realizar os atos mais simples do dia a dia,
mas também porque, juntamente com sua saúde, o disparo de arma de fogo afetou
grande parte dos seus sonhos, roubou-lhe a juventude e a impediu de desfrutar
da própria vida de maneira plena, com reflexos de ordem pessoal, social e
afetiva” – conforme apontou Bellizze.
Os comerciantes
sustentaram que o crime de roubo à mão armada caracterizava fortuito externo e
os tiros que atingiram a vítima foram disparados pelos assaltantes.
Segundo Bellizze, “ao
reagirem de maneira imprudente à tentativa de roubo à joalheria, dando início a
um tiroteio, os vigilantes frustraram a expectativa de segurança legitimamente
esperada, a qual foi agravada, no caso, uma vez que a autora foi atingida por
projétil de arma de fogo, sendo o fato suficiente para torná-la consumidora por
equiparação, ante o manifesto defeito na prestação do serviço”.
A causa que produziu o
dano, de acordo com o ministro, não foi o assalto, “que poderia ter se
desenvolvido sem acarretar nenhum dano a terceiros, mas a deflagração do
tiroteio em via pública pelos prepostos dos réus, colocando pessoas comuns em
situação de grande risco, o que afasta a caracterização de fortuito externo”,
além de os vigilantes terem atuado coletivamente “para a produção do resultado
lesivo, advindo não dos disparos em si, mas da ação que desencadeou o conflito
armado. Daí a responsabilização dos estabelecimentos pelos danos ocorridos”.
Explosão em bueiro
Outro caso de consumidor
por equiparação foi reconhecido no AgRg no REsp 589.789, de
relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, na Terceira Turma. O caso teve origem
em uma ação indenizatória contra a Light Serviços de Eletricidade S.A. após a
explosão em um bueiro em Copacabana, no Rio de Janeiro.
Os autores pediram
ressarcimento pelos danos materiais, morais e estéticos, porém a Light alegou
que não seria possível a aplicação do CDC ao caso por não haver relação de
consumo a ser tutelada.
O entendimento unânime da
Terceira Turma foi no sentido de que o acórdão do tribunal estadual estava em
perfeita harmonia com a jurisprudência do STJ de que “equipara-se à qualidade
de consumidor, para os efeitos legais, aquele que, embora não tenha participado
diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do evento danoso
decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões,
gerando risco à sua segurança física e psíquica”, conforme exposto pelo ministro
João Otávio de Noronha no REsp 1.000.329.
Derramamento de petróleo
No AgInt nos EDcl no CC 132.505,
sob relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, a Segunda Seção discutiu o
caso de pescadores artesanais do Espírito Santo que haviam ajuizado ação de
reparação de danos contra a Chevron Brasil, em razão de um vazamento de
petróleo ocorrido no litoral do Rio de Janeiro.
O óleo derramado se
espalhou e prejudicou a atividade dos pescadores que moravam no Espírito Santo,
considerados consumidores por equiparação.
O ministro explicou que
tal entendimento estava correto e já havia sido aplicado em hipótese semelhante
na Segunda Seção, quando pescadores foram considerados vítimas de acidente de
consumo, visto que suas atividades pesqueiras foram prejudicadas por
derramamento de óleo (CC 143.204, da relatoria
do ministro Villas Bôas Cueva).
A Justiça do Espírito
Santo afirmou não ser competente para julgar um crime ambiental ocorrido em
outro estado. A Justiça fluminense alegou que, como os pescadores são
consumidores equiparados, poderiam ajuizar ação em seus domicílios, conforme
preconiza o artigo 101, inciso I, do CDC.
Segundo o ministro Antonio
Carlos, havendo a incidência das regras consumeristas, “a competência é
absoluta”, razão pela qual deve ser fixada no domicílio do consumidor, ou seja,
“apesar de o acidente ter ocorrido no litoral do Rio de Janeiro, seus reflexos
danosos se estenderam para outras localidades, entre as quais o território
pesqueiro onde os autores da ação laboravam, que deve ser considerado o local
do fato, para fins de incidência do artigo 100, inciso V, alínea a, do Código
de Processo Civil”.
“Nesse
sentido, aplicam-se ao caso as regras definidoras de competência do artigo 101
do CDC, as quais, nos termos da jurisprudência do STJ, têm natureza absoluta,
podendo ser conhecidas de ofício pelo juízo, sendo improrrogável, sobretudo
quando tal prorrogação for desfavorável à parte mais frágil”, disse o relator.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):
REsp 1125276AREsp 1076833REsp 1000329REsp 1574784REsp 1732398REsp 589789CC 132505CC 143204
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